Ana Luisa Lopes Gomes e Eduardo Oliveira Agustinho*
Ações
Voto plural e o ciclo de vida das startups
Está cada vez mais presente na cultura do empreendedor inovador brasileiro a expectativa de que o modelo de negócio desenvolvido percorra a jornada do ciclo de vida das startups. Realizada a travessia do tenebroso “vale da morte” e com ganho de tração e rodadas de investimento, chega-se ao rarefeito mundo das Ofertas Públicas de Ações (OPAs) – ou, como conhecemos em inglês, do Initial Public Offering (IPO).
Essa última etapa do ciclo, aliada às rodadas de investimento anteriores, permite a capitalização de médios e grandes negócios sem a necessidade de recorrer aos meios tradicionais de acesso ao crédito, como os empréstimos bancários. No caso específico do IPO, uma sociedade emite ações e as oferece para o público em geral, para que os interessados possam adquiri-las, integralizando o seu preço e passando, assim, à condição de sócio do negócio.
Uma vez que a abertura de capital resulta no ingresso de novos sócios no quadro acionário da companhia, entretanto, preocupações surgem tanto para os sócios-fundadores como para os investidores, pois juntamente com a condição de acionista se origina o direito dos sócios ingressantes de votarem nas assembleias gerais e determinarem o futuro da sociedade. Essa possível mudança no perfil político dos titulares do processo decisório sobre os rumos da empresa pode gerar dúvidas acerca da capacidade do empreendedor de preservar os aspectos identitários que podem ter sido determinantes na construção da trajetória que levou à abertura de capital. Por isso, pode ser de interesse dos fundadores e dos próprios investidores a utilização de instrumentos jurídicos para que o poder político da companhia seja mantido nas mãos dos primeiros, propiciando, dessa forma, as condições necessárias para a preservação da cultura semeada na empresa por aqueles que a criaram.
O primeiro desses instrumentos é a ação preferencial, cujos titulares podem ter restringido total ou parcialmente o seu direito de voto. Como contrapartida, recebem vantagens de cunho patrimonial, caso da preferência no recebimento de dividendos. A lei prevê que apenas 50% das ações que compõem o capital social podem ser de natureza preferencial. Desse modo, para ser o titular do poder de controle, um acionista precisa deter metade das ações com poder de voto (ações ordinárias) mais uma ação, ou seja, 25% do capital social, além de uma ação ordinária.
Ocorre que a estrutura das ações preferenciais, apesar de atender à demanda advinda do interesse dos fundadores no sentido de ampliar as condições de preservação dos seus direitos políticos e até mesmo do poder de controle da sociedade, é insuficiente da perspectiva dos interesses dos investidores.
Explique-se: como visto, em uma sociedade anônima com capital social formado por ações ordinárias e ações preferenciais sem direito a voto, confere-se aos titulares das primeiras – que, em regra, são os fundadores – os direitos políticos e até mesmo o poder de controle sobre essa sociedade. Obtém-se, então, a estrutura protetiva usualmente visada por esses sócios. Mas como as ações ordinárias são livremente negociáveis, não existe, necessariamente, nessa estrutura, uma proteção ao titular da ação preferencial sem direito à voto quanto à possibilidade dos fundadores alienarem suas participações na sociedade, ampliando os direitos políticos de terceiros investidores. Nesse caso, o preferencialista que optou por uma participação acionária sem direitos políticos, na expectativa de que os fundadores preservariam sua posição e compromisso com a empresa, pode se surpreender com uma mudança durante a jornada da companhia após a abertura do capital. A estrutura de capital social formado por ações ordinárias e preferenciais não oferece, por conseguinte, a segurança esperada pelos investidores nas sociedades em que há uma associação muito forte, pelo mercado, entre o sucesso da empresa e a personalidade de seus fundadores.
É nesse panorama que, por vezes, passa a ser de interesse dos sócios-fundadores e até dos próprios investidores que um percentual relevante do capital social seja livremente alienado, voltado à obtenção de recursos para o negócio ou mesmo para remunerar os sócios. De outro lado, essa captação deve ocorrer de forma a manter o poder com o sócio-fundador, que pode ser considerado um “ativo” da sociedade – Mark Zuckerberg à frente do Facebook é um exemplo.
Esse problema pode ser solucionado com a utilização do voto plural, instrumento disponibilizado recentemente às companhias brasileiras. Agora, os acionistas podem prever, no estatuto social, que determinada classe de ações goza de quantidade superior de votos, abdicando do padrão de um voto para cada ação.
A Lei n. 14.195/2021, que inseriu tal possibilidade no ordenamento jurídico brasileiro, estabelece, porém, que para lançar mão do voto plural a companhia precisa observar uma série de limitações. Primeiramente, apenas companhias fechadas ou abertas que ainda não negociam seus valores mobiliários na bolsa poderão prever a existência de ações com atribuição de voto plural em seu estatuto social. Tal previsão confere maior segurança aos investidores, pois impede que companhias que já negociam ações na bolsa alterem sua dinâmica de poder interna por meio da emissão de ações com atribuição de voto plural.
Uma vez aprovada a previsão, a companhia precisa se atentar ao fato de que só podem ser atribuídos até 10 votos para cada uma das ações ordinárias, sendo permitido à companhia a criação de classes distintas de ações com direito de voto. Desse modo, os acionistas são livres para atribuir a quantidade de votos que bem entenderem a cada espécie, podendo até mesmo criar mais de uma espécie de ação ordinária com proporções de votos distintas, desde que respeitado o limite legal.
Também restou estabelecido um prazo de vigência para o voto plural que não pode ultrapassar sete anos, podendo, posteriormente, ser prorrogado para qualquer prazo, por meio da deliberação dos acionistas não titulares de ações com voto plural.
Como esse mecanismo é usualmente utilizado para proteger os interesses dos sócios-fundadores, garantindo-lhes maior poder político sem que tenha havido contribuição econômica equivalente, mas ao mesmo tempo possibilita a inserção de um traço personalista como condição para o seu exercício, a lei limita a possibilidade de transferência, estabelecendo que, ao serem transferidas, as ações serão automaticamente convertidas em ações ordinárias sem voto plural.
Assim, a manutenção do poder de controle pelos acionistas fundadores, além de atender aos seus próprios interesses, apresenta-se como suporte jurídico para potenciais investidores, já que, a depender do grau de conhecimento do empreendedor acerca da área da atividade e de sua reputação e respeitabilidade perante o mercado, tem-se como interesse maior do próprio acionista investidor a segurança de que o poder deliberativo decisório sobre o direcionamento da empresa se encontra estável nas mãos desse sócio-fundador.
Na estrutura do voto plural, uma boa prática é a fixação de prazos de vigência, medida conhecida como sunset clause, de forma a possibilitar que essa vantagem política se extinga por deliberação dos sócios a partir de determinado momento. De acordo com estudo da B3, Austrália e Estados Unidos não possuem regramento sobre prazos, já as legislações de Singapura e Hong Kong determinam que o voto plural não pode ser eterno, mas dão liberdade para que cada empresa defina um prazo. Como mencionado, no ordenamento brasileiro, o voto plural, em sua gênese, não pode ultrapassar sete anos, podendo posteriormente ser prorrogado para qualquer prazo, por meio da deliberação dos demais acionistas não titulares dessa ação.
Dessa forma, implementa-se o espaço deliberativo necessário para que os sócios tenham a oportunidade de alterar a estrutura de direitos políticos, o que tenderá a ocorrer no momento em que o elemento personalista do titular das ações com atribuição de voto plural deixa de ser relevante, o que indica o amadurecimento da cultura da empresa de forma já dissociada da identidade dos fundadores.
Essa estrutura já é utilizada por organizações em diversos países, tendo sido adotada por companhias brasileiras, a exemplo de PagSeguro, XP Investimentos, Arco Platform, entre outras, que optaram por abrir o seu capital em bolsas estrangeiras.
Muito se comentou, por ocasião desses IPOs, que a ausência do instituto do voto plural na lei brasileira teria sido um fator preponderante na escolha dessas startups pela abertura de capital em outros países. Por esse motivo, entende-se que a autorização de utilização de tal instrumento torna o mercado de valores mobiliários nacional mais atualizado em comparação com o restante do mundo e, consequentemente, mais competitivo.
Nem tudo, entretanto, são flores! É necessário salientar que, apesar do voto plural representar um avanço para a oferta de mecanismos que viabilizem a mobilização de recursos para empreendedores inovadores e investidores, se ele for implementado de forma isolada será insuficiente para tornar o mercado de valores mobiliários brasileiro mais atrativo.
Importante reforçar que essa ressalva final não tem por objetivo desmerecer ou reduzir a relevância do avanço obtido pelo regime jurídico de valores mobiliários brasileiro com a introdução do voto plural. A preocupação está na necessidade de haver a compreensão de que, isolado, o aprimoramento pode não resolver o problema pretendido – no caso, a revoada de startups brasileiras para abrir capital em outras jurisdições. Se não houver, portanto, um trabalho contínuo e assertivo de aprimoramento das instituições formais e informais para o exercício da atividade empresarial existente no país, continuará sendo comum assistirmos à etapa final do ciclo de vida das startups brasileiras ocorrendo em bolsas de valores estrangeiras.
*Ana Luisa Lopes Gomes é advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Eduardo Oliveira Agustinho é advogado, doutor em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUCPR e professor de Direito Empresarial na mesma instituição.