Startups e inovação
Como Curitiba virou celeiro de inovação e cidade de futuros unicórnios no Brasil
Depois de décadas sendo reconhecida pelo urbanismo, é hora de Curitiba brilhar por seu potencial na inovação. Em 2020, a cidade acumulou prêmios que endossam seu lugar entre as melhores do Brasil para novos negócios em tecnologia.
A lista é grande. Em julho, a capital paranaense foi a única do país selecionada no ranking Global Startup Ecosystem Report 2020, que aponta as 100 cidades mais promissoras do mundo para startups. Em agosto, despontou como líder brasileira em produtividade na tecnologia de informação segundo a pesquisa Tech Report 2020, realizada pela Associação Catarinense de Tecnologia (Acate). Em setembro, levou o prêmio canadense Wellbeing Cities Award por promover uma economia urbana vibrante com o projeto do seu próprio ecossistema de inovação, o Vale do Pinhão.
Mas isso não é por acaso. Nos últimos dez anos, a cidade passou por um processo de amadurecimento que culminou nesse momento otimista para empreendedores – um trajeto que teve o desenvolvimento de uma ação conjunta de diferentes atores da sociedade conhecida como tríplice hélice. Composta tradicionalmente por governo, universidades e iniciativa privada, essa engrenagem evolui quando cada pilar está suficientemente desenvolvido para apoiar o outro, criando um ciclo autossustentável de inovação. "Inovação não é um esporte individual: é coletivo", aponta Henrique Domakoski, superintendente de inovação do governo do Paraná.
Curitiba: passado e presente inovador
O que possibilitou que Curitiba tivesse um ambiente prolífero em 2020 tem início algumas décadas atrás. Não há unanimidade para definir um ponto de partida nessa história, mas diversos movimentos que favoreceram essa evolução nos últimos dez anos. Pode-se citar a transformação urbana encabeçada por Jaime Lerner nas décadas de 1960 e 1970, fomentando a mobilidade e a sustentabilidade na cidade; a criação do Centro de Integração de Tecnologia do Paraná (Citpar) na década de 1980, aproximando a tríplice hélice; e, já nos anos 1990, o nascimento de um primeiro case curitibano de sucesso nacional: a Bematech – empresa de tecnologia de automação comercial, adquirida pela TOTVS em 2015.
Mas foi na década de 2010 que surgiu uma primeira onda de startups de sucesso que são a vitrine da cidade Brasil afora. É o caso do Ebanx, fintech de soluções de pagamento fundada em 2012 e primeira startup fora de São Paulo a conquistar no Brasil o título de unicórnio (empresas cujo valor de mercado ultrapassam US$ 1 bilhão). Presente em nove países da América Latina, a empresa descomplica pagamentos locais para efetuar pagamentos de sites internacionais como Spotify e Aliexpress.
Para João Del Valle, cofundador e COO do Ebanx, a maior dificuldade de empreender nessa época era angariar talentos que tivessem experiência em startups. "Curitiba sempre teve muita tecnologia voltada para o ambiente corporativo por meio de grandes empresas, mas ainda não tinha para startups. Um dos primeiros desafios foi encontrar essas pessoas para formação desses primeiros times", relata. A solução foi buscar ex-empreendedores e profissionais dessas grandes corporações que estivessem dispostos a mudar sua mentalidade para um modelo voltado à inovação.
Mas, para o executivo, isso não foi – e não deve ser – impedimento para crescer. Del Valle aponta que o coração do ecossistema deve ser o empreendedor, e o que vem depois dele é consequência. Ele pontua que, em mercados muito cheios, essa lógica pode desviar o foco do profissional. “O ecossistema ajuda muito, mas às vezes também pode ser uma cortina de fumaça, cheio de eventos e networking, e você acaba ficando mais devagar na captação de clientes e na construção [da empresa]"– , aponta. "A base de um ecossistema de startups é o empreendedor, é trabalhar, construir, gerar time. Tudo o que está em volta é importante, mas o final tem que ser um só: gerar mais empreendedores, mais empresas de sucesso."
Outra startup fundada à época é a Contabilizei, que oferece serviços de contabilidade online. Criada em 2013, a empresa que, no início, tinha três funcionários, hoje conta com mais de 400 colaboradores e 20 mil clientes no Brasil. Assim como o Ebanx, a Contabilizei também foi buscar em grandes corporações seus primeiros talentos – processo que hoje já evoluiu com o amadurecimento do mercado, contando com uma mão de obra mais qualificada.
Para Vitor Torres, CEO da Contabilizei, não estar em São Paulo não atrapalhou o crescimento da empresa – pelo contrário, facilitou. "Estar em Curitiba permitiu que a gente tocasse nossa empresa fora do radar. As grandes startups não olhavam para a Contabilizei para buscar talentos. Isso nos permitiu crescer de forma rápida, sem competir com São Paulo", afirma.
Mesmo hoje, com o ecossistema mais robusto, o cenário continua positivo e atraente. Ao contrário de outros grandes centros, os profissionais de Curitiba permanecem em cada empresa por mais tempo, trazendo mais conhecimento e treinando novos talentos. “O ecossistema está forte e está melhor em termos de competitividade do que em São Paulo. Lá, se troca de empresa a cada ano, e o profissional acaba não conseguindo agregar valor. No Paraná, você vê vários profissionais ficando dois ou três anos dentro da empresa, o que ajuda muito o ecossistema", explica.
O crescimento do Vale do Pinhão
De lá para cá, diversas outras startups despontaram com grande potencial: MadeiraMadeira, Pipefy e Olist são algumas das mais citadas pelos executivos. Mas não foi apenas esse lado da engrenagem que avançou.
Em 2017, a prefeitura de Curitiba criou o Vale do Pinhão, projeto que nasceu como uma reurbanização da região do bairro Rebouças, mas passou a integrar novas áreas de atuação como forma de incentivar a inovação na cidade como um todo.
“O Vale do Pinhão nasceu com a visão de que Curitiba, que sempre teve a inovação no seu DNA, precisava se revisitar nos seus conceitos. Ele nasceu como uma reurbanização e se expandiu para uma visão de ecossistema, virando um grande movimento na cidade em que a prefeitura é um dos líderes, mas não o único", explica Cris Alessi, presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento, instituição que é um dos pivôs do projeto.
O projeto faz com que a condução da inovação na cidade seja dividida em cinco pilares: articulação do ecossistema de inovação, legislação e incentivos ficais, educação em empreendedorismo, tecnologia, urbanização e sustentabilidade.
Uma das ações da prefeitura é conceder uma dedução do pagamento do Imposto sobre Serviços (ISS) para empresas de tecnologia através do programa Curitiba Tecnoparque. Para Domakoski, do governo do Paraná, essa é uma das ações que reconhecem a importância do Vale do Pinhão para o ecossistema, pois incentiva empresas de tecnologia a permanecerem em Curitiba. "O Vale do Pinhão ajudou a trazer luz, acelerar e multiplicar essas boas práticas na tríplice hélice", aponta.
O papel das universidades e das corporações
A cultura inovadora não integra apenas as novas empresas, mas também universidades e corporações tradicionais – que passaram a buscar nas startups formas de se renovar. Para isso, existem diferentes agentes dedicados a fazer essa ponte. Um deles é o Distrito – um ecossistema de inovação independente com braços de pesquisa, investimento, aceleradora e formação de comunidade – cuja sede da região Sul foi inaugurada em Curitiba em 2018.
Luiz Gustavo Comeli, gerente regional do Distrito CWB, explica que essas corporações aos poucos começaram a entender que importar o processo de inovação digital as ajuda a resolver desafios particulares a cada uma. É nessa conexão que entra a expertise do Distrito, ligando as demandas às soluções.
"Nós não vamos ter a quantidade de startups de São Paulo, que é o grande centro financeiro do país, mas vamos ter qualidade: negócios gerados em Curitiba têm maior probabilidade de ter sucesso", relata Comeli. Uma das variáveis que contribui para isso é a qualidade das universidades na formação de novos profissionais – que ainda continua sendo um dos principais gargalos para o crescimento do ecossistema, principalmente na área de desenvolvimento. Domakoski aponta que havia dez mil vagas de tecnologia em aberto no Paraná no pré-pandemia, número que deve aumentar com a transformação digital acelerada pela crise.
Por isso, para Comeli, o principal limitador do aumento de um ecossistema é a ausência das universidades. "Ali dentro a gente tem um potencial gigantesco de desenvolver novos negócios, mas elas precisam ensinar seus alunos a serem empreendedores", destaca.
Atuando tanto na educação empreendedora como na conexão entre startups e corporações, uma organização que desponta como modelo inovador para unir a universidade ao ecossistema é a Hotmilk, iniciativa criada na PUCPR. O programa já incubou e acelerou mais de 140 startups e aceita empresas em diferentes estágios, aprimorando as iniciativas para o mercado.
"O principal ativo da universidade é produzir conhecimento, e conhecimento em forma de nota fiscal é inovação", afirma Fernando Luciano, diretor da Hotmilk. “Quem tem pesquisa de desenvolvimento no seu DNA e sempre está testando novidades são as universidades". Por isso, a academia tem um papel fundamental não só de formação de profissionais como de criação de novas tecnologias.
O que deveria acontecer com mais frequência, aponta ele, é colocar o conhecimento gerado no mercado. "Os pesquisadores têm vontade de fazer isso por conta própria, mas o problema é como você liga uma indústria carente de inovação ao que está em fase de geração de conhecimento da universidade", diz. Isso continua sendo um desafio principalmente por conta do chamado "vale da morte": o ponto em que tecnologias produzidas na universidade não vão ao mercado, o que muitas vezes acontece porque a indústria é avessa ao risco.
"Raramente a indústria aposta em algo sobre o qual ela tem dúvidas. Mas existe uma parcela cada vez maior de empresas que está investindo no risco porque essa é a única forma de se manterem competitivas e inovadoras, e fomentar esse movimento também é um papel forte do governo", relata Luciano.
Para a superintendência de inovação do estado, a premissa é também fazer conexões. "O governo não é protagonista, é coadjuvante. O protagonista é o empreendedor e a academia. Já o governo precisa tirar entraves e ser o grande articulador para que essa aproximação aconteça entre esses dois setores e permitir que o que é feito na academia transborde os muros da universidade e vá para a sociedade", afirma Domakoski.
Fundos de investimento alavancam crescimento
Outra característica que tem evoluído na cidade nos últimos anos foi a criação e profissionalização de fundos de investimentos de risco para as startups, uma das formas mais almejadas pelos executivos para acelerar seus negócios. Muitas vezes, ela vem como parte do ciclo do empreendedor: depois de ter sucesso com uma empresa, seu fundador investe em uma nova tecnologia, fazendo a roda girar. Esse é um dos estrangeirismos que permeia o vocabulário dos empreendedores: é a chamada cultura do give back.
Essa é a lógica do Honey Island Capital, fundo criado em 2015 pelos fundadores do Ebanx. Mariana Foresti, sócia do fundo, explica que o propósito é estar próximo a novos negócios, não apenas investindo capital, mas compartilhando suas experiências enquanto mentores. "Nosso grande diferencial é ter empreendedores que sabem que essa não é uma trajetória exponencial", explica.
Por isso, o foco do fundo é investir em empresas ainda no estágio inicial. "A gente faz aquele primeiro investimento para a empresa montar uma equipe mais robusta de produto, de vendas, para chegar no próximo passo", aponta. Além disso, a prioridade do fundo é investir localmente – cerca de 70% das startups investidas são de Curitiba.
Também com interesse em empresas da região Sul, o fundo Caravela Capital foi criado em 2019 com o objetivo de identificar e acelerar bons negócios, e pretende investir em até 20 empresas até 2021. Para o sócio fundador Lucas de Lima, Curitiba se consolidou como segundo maior polo do país nos últimos anos por conta de um “efeito bola de neve cultural" no desenvolvimento do seu ecossistema. Para ele, o próximo grande passo para avançar é criar e manter talentos na cidade. "Esse é o ponto para o crescimento em Curitiba: atrair, manter e treinar pessoas. Seja por universidades, aceleradoras ou empresas — se tiverem um modelo inteligente de contratação que treine rápido novos profissionais, vão ter o diferencial que nos trouxe até aqui e que vai nos levar mais longe ainda", relata.
"Há alguns anos, se brincava que Curitiba não era ecossistema: era 'egossistema'. As pessoas não se falavam, a cidade não tinha uma colaboração ou apoio às iniciativas uns dos outros. Isso mudou muito. Hoje, a gente tem grupos de investidores, de empreendedores, e essa comunicação flui", aponta Foresti, da Honey Island. "Somos otimistas com o momento em que estamos. Vários pilares importantes para o desenvolvimento do ecossistema estão no seu lugar. Agora é hora de aproveitar e fazer acontecer".