João Kepler é escritor, educador, anjo-investidor, conferencista, apresentador do programa PIVOTANDO no SBT News. É autor de 11 livros, especialista em nova economia, equity, startups e negócios inovadores. Foi premiado quatro vezes como o Melhor Investidor Anjo do Brasil pelo Startup Awards. Também foi premiado pelo iBest como Top #1 do Brasil em Economia e Negócios. Kepler ainda é CVO da Bossa Invest - Venture Capital e CEO da Equity Fund - Private Equity.
Decisão judicial em suposta violação de software prejudica desenvolvimento no Brasil
23/10/2020 10:49
Uma empresa paranaense de tecnologia está sendo prejudicada por uma interpretação equivocada dada à Lei de Software e seus desdobramentos podem gerar grande insegurança para o mercado de software brasileiro, prejudicando todo o setor.
A Gear Up lançou, em 2019, seu software para atender o mercado empresarial brasileiro com o objetivo de oferecer uma ferramenta de vendas completa, que trouxesse em uma única plataforma tudo o que uma empresa necessita para crescer em vendas.
A solução nasceu a partir do entendimento do seu fundador que faltava uma plataforma horizontal que atuasse em toda jornada de vendas de uma organização. Leon Le Senechal entendia que o mercado brasileiro de software para vendas e marketing era verticalizado, com soluções específicas que resolviam até então dores pontuais, exigindo que uma empresa contratasse diferentes fornecedores para ter sua demanda da prospecção de negócios ao pós-vendas plenamente atendida.
Analisando essa necessidade de mercado e todos os desafios que passou como vendedor, trabalhando em empresas de diferentes portes e segmentos por mais de dez anos no Brasil, Alemanha e Portugal, Leon decidiu empreender. No final de 2017, a empresa nasceu como uma consultoria de vendas para ajudar empresas tradicionais a criarem suas máquinas de vendas, utilizando metodologias disseminadas mundo afora e muito comuns entre as startups — como a metodologia da Receita Previsível, que sistematiza o processo de vendas para gerar crescimento previsível para organizações.
Já no início de 2018, ainda como uma consultoria, firmou seus primeiros contratos e optou por contar com um fornecedor externo de tecnologia para a entrega da infraestrutura de software, porém, já no princípio da relação estabelecida com esse fornecedor, devido às exigências do mercado, as entregas não se concretizaram da maneira ajustada, o que resultou na ruptura da parceria.
A partir de então, a Gear Up iniciou o desenvolvimento da sua própria solução, lançada em 2019: adotou o modelo SaaS (software como serviço, em português), deixou de operar como consultoria, transformando-se em uma empresa de tecnologia, legitimamente paranaense, inserida na nova economia. Consequentemente, investidores foram atraídos, assim como clientes de diferentes regiões do país, e a Gear Up seguiu sua trilha de crescimento.
Só que no caminho de todo empreendedor existem obstáculos, e muitos inesperados. Em setembro de 2019, a Gear Up, foi surpreendida por uma iniciativa da mesma empresa que não conseguiu entregar o software que eles contratavam no passado, os acusando de plágio e concorrência desleal. Juntamente com essa acusação, foi estabelecida uma liminar que proibiu a comercialização do software, sob pena de multa de R$ 50 mil por dia.
Um perito foi nomeado em juízo para esclarecer se houve ou não plágio no caso, como sustenta a empresa autora que ajuizou a ação. A Lei nº 9.609/98, Lei de proteção da propriedade intelectual de programa de computador (ou software), norteou o trabalho e em seu Art. 6º diz: “Não constituem ofensa aos direitos do titular de programa de computador: III - a ocorrência de semelhança de programa a outro, preexistente, quando se der por força das características funcionais de sua aplicação, da observância de preceitos normativos e técnicos, ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão”. Em outras palavras, a semelhança entre os softwares desenvolvidos para gerenciamento das atividades empresariais é permitida pela Lei de Software.
O perito, ao examinar os códigos-fonte dos softwares das partes, concluiu que o grau de similaridade entre ambos é baixo, mas considerou similaridades de funcionalidades e aparência entre as suas plataformas, resultando daí uma conclusão negativa para a Gear Up e o restabelecimento da liminar que proíbe a empresa de comercializar sua plataforma. Discorri o caso completo aqui para que vejam a complexidade e a importância deste caso e como ele pode abrir uma brecha enorme em nosso mercado.
A startup está impedida judicialmente de trabalhar, não pode vender, parou rodadas de captação de investimentos. Esta ação pode caracterizar como um divisor de águas no mercado de software brasileiro. Se semelhanças funcionais entre softwares configurarem plágio e bloquearem o direito de empresas existirem como estão fazendo neste caso, isso representa um risco enorme para o mercado.
Aplicativos como Uber, 99 e Cabify não devem existir por serem semelhantes? Ou ainda Ifood e Rappi? A concorrência é fundamental para estimular um mercado livre que beneficia o consumidor. É fundamental para a inovação existir. Sem isso não temos confiança para investimento, não temos empreendedorismo!
O rigor da medida judicial, inevitavelmente, repercutiu no mercado e despertou a atenção de entidades ligadas ao setor da Tecnologia da Informação, especialmente em razão da relevância do tema. O presidente da Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação (Assespro), Adriano Krzyuy, informou que a entidade tem interesse em acompanhar de perto os desdobramentos do processo, já que decisões dessa natureza trazem consequências negativas para o mercado de software.
Como o processo tramita sob segredo de justiça, a entidade está estudando uma maneira de ingressar nos autos na condição de Amicus Curiae, na medida em que a matéria em discussão tem o potencial de afetar os interesses das empresas associadas. A Gear UP entrou com recurso com objetivo de cassar a liminar que a impede de exercer plenamente as suas atividades, que será julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná.
Se essa tese não for revertida, o ecossistema brasileiro de inovação estará em risco, e como consequência todo o crescimento que a tecnologia pode trazer para nosso país nos próximos anos. Torcemos para que a verdade e a coerência prevaleçam e o mercado da tecnologia cresça de forma ética e com concorrentes se respeitando e disputando mercado com jogo limpo.