Fernando Luciano é diretor da Hotmilk, ecossistema de inovação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), professor e pesquisador da área de Biotecnologia também na PUCPR. Graduado em Farmácia e Bioquímica de Alimentos pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também é doutor em Food and Nutritional Sciences pela Universidade de Manitoba, no Canadá, onde foi bolsista do governo canadense. Atuou também como pesquisador no Guelph Research and Development Centre, no Canadá, e como docente convidado na Universidade de Valência, na Espanha. No campo do empreendedorismo, é CEO do NASSLE Group, focado em P&D, sua terceira startup.
O "Vale da Morte" no título desta coluna tem duplo sentido e, infelizmente, nenhum deles é muito bom. Em um ano no qual a importância da ciência e tecnologia teve sua maior validação para conter uma catástrofe ainda maior causada pela pandemia do novo coronavírus, nossos governantes decidem fazer cortes significativos de recursos destinados para esse fim. Sim, o Brasil está em crise, mas tirar recurso de onde pode vir uma solução é contrassenso.
Já estamos sofrendo as consequências do descrédito da ciência e da falta de ações coordenadas, mas o corte orçamentário observado em abril é uma apunhalada para a continuidade de projetos importantes de pesquisa, principalmente na área da saúde.
Falta de recurso financeiro governamental para projetos com alto potencial de impacto faz com que eles entrem em uma fase de desaceleração ou até suspensão bem quando precisamos colocar o pé no acelerador.
Inovação exige que encaremos riscos, sendo que os maiores riscos na ciência e tecnologia são tomados com o apoio de recursos governamentais.
Até mesmo as bolhas de inovação, como o Vale do Silício e Israel, são altamente dependentes desse tipo de recurso para tirarem as ideias mais revolucionárias do papel.
E a indústria?
A indústria investe em inovação, mas não cumpre o papel dos governos. O setor investe pesadamente em conceitos com maior grau de comprovação, caso contrário, raramente entra na corrida.
Pensem nas vacinas que temos disponíveis hoje. Apesar de saber que iriam faturar bilhões com a sua comercialização, todas as farmacêuticas utilizaram recursos públicos para mitigar os riscos de desenvolvimento, muitas delas em parceria com universidades.
Existe uma régua para avaliar o grau de maturidade de uma tecnologia chamado Technology Readiness Level ou, simplesmente, TRL. Trata-se de uma escala de 1 a 9 concebida pela Nasa na década de 1970 para aplicação em suas missões. A partir de então, essa escala foi difundida por todo o mundo e, desde 2015, temos até uma norma da ABNT sobre o tema (NBR 16290:2015).
Basicamente, os níveis de TRL de 1 a 2 vão da geração de conhecimentos básicos até a pesquisa aplicada. De 3 a 6 temos a transição da pesquisa aplicada para o desenvolvimento experimental, com testes de escala laboratorial, produção de protótipos e testes em ambientes maiores. Nos níveis 7 e 8, a tecnologia é levada para um estágio de escala, observando se a validação ocorrida na fase anterior também é provada na fase de industrialização. Por último, em TRL 9, a tecnologia entra em fase de produção e comercialização.
O "Vale da Morte"
Os TRLs de 1 até 3 são supridos principalmente por universidades, mesmo que a duras penas em nosso país. A indústria investe pesadamente em projetos de TRL 7 e superior.
No meio do caminho, temos o segundo “Vale da Morte” que menciono no título. Milhares de projetos que poderiam trazer imensos benefícios à sociedade ficam no meio do caminho pela falta de mecanismos que promovam seu desenvolvimento.
Alguns órgãos, como a Finep, BNDES e Embrapii subsidiam projetos nessa faixa de TRL, mas os recursos e a procura ainda são insuficientes para o volume de ciência e tecnologia produzido no país.
Também há leis de incentivo fiscal, como a Lei do Bem e a Lei de Informática, que reduzem os custos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, mas esses recursos são acessados por uma pequena parte da indústria nacional.
Se considerarmos os anos de 1996 até 2019, o Brasil ocupa a 15a posição em número de artigos científicos publicados em periódicos internacionais de alto impacto, segundo o Scimago Institutions Rankings, totalizando cerca de 1,027 milhão de documentos. Ao mesmo tempo, nosso país ocupou a 62a posição no Índice Global de Inovação em 2020, conforme divulgação da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Esses dados destoam muito. Em outras palavras, temos muita iniciativa mas pouca “acabativa”.
Patentes
E quando olhamos para os nossos dados de proteção intelectual, também vemos uma figura alarmante de como nossa indústria nacional precisa inovar mais.
Das cerca de 25,3 mil patentes depositadas no Brasil em 2019, apenas 5,4 mil foram de brasileiros. Os Estados Unidos depositaram 7,5 mil patentes no Brasil nesse mesmo ano. Ou seja, americanos depositam 38,9% mais patentes no país do que os próprios brasileiros.
Pedidos de patentes de invenção por origem do depositante – 2008-2019
Da pequena quantidade de patentes nacionais, uma boa parcela é depositada por pessoas físicas. Quando falamos de pessoas jurídicas, as universidades são as maiores representantes.
Em outras palavras, poucas das nossas invenções recebem aplicação e realmente se tornam inovações. Qual é a melhor saída para isso? Incentivar a conexão da universidade com a indústria é uma das possibilidades de médio e longo prazo que já abordei em colunas anteriores. Mesmo assim, o status quo da atualidade tem aversão ao risco – e os números mostram que a caminhada não anda a passos largos.
O que mais poderíamos fazer? Criar maneiras de transformar essas tecnologias em empresas, por meio do incentivo para que pesquisadores levem ao mercado suas invenções.
Muitas fundações de amparo à pesquisa estão incentivando esse tipo de ação por meio de editais como o Sinapse da Inovação, Centelha, PIPE, entre outros.
Mas o recurso dedicado ainda é muito tímido se compararmos com o que ocorre com esse tipo de iniciativa em países que estão na vanguarda da inovação, como a China, Cingapura e Israel – para citar outros exemplos além dos EUA. Outro ponto fraco desses programas é que eles possuem pouco acompanhamento, além do gasto dos recursos.
Inventores não são, necessariamente, empreendedores
Por isso, para ser mais assertivo no uso do recurso público, é importante que haja processos de formação e mentoria de especialistas para esses profissionais, bem como artifícios que conectem pessoas com competências diferentes, unindo a tecnologia aos negócios. As aceleradoras e incubadoras de empresas ligadas às universidades e institutos de pesquisa são ilhas onde essa dinâmica ocorre em nosso país e que devem ser incentivadas.
Com esse primeiro impulso em massa, temos o potencial de ter uma pletora de novas empresas capazes de impactar não só o Brasil, mas outros países do mundo.
É só com tecnologia de ponta combinada a modelos de negócio inovadores que deixaremos de ser seguidores para nos tornarmos líderes.