O que inovação tem a ver com O Gambito da Rainha, a nova série da Netflix? Pesquisas comprovam que o conhecimento de jogadores em relação a variações de jogadas, aberturas e movimentos são as características que determinam a qualidade do enxadrista muito mais do que sua capacidade de abstração.
“O Gambito da Rainha”: inovação é jogo de enxadrista
30/10/2020 22:26
Recém-lançada pela Netflix, a série "O Gambito da Rainha" (The Queen’s Gambit, Estados Unidos, 2020), conta a história de uma garota-prodígio do xadrez. O nome da série vem de uma abertura do jogo, do grupo das aberturas do peão da dama, e retrata que em nível mais alto do jogo não há espaço para improvisos.
Art Markman, professor da Universidade do Texas e diretor do famoso Centro de Inovação IC2, da cidade de Austin, compara a habilidade de inovar com jogar xadrez. Ele cita pesquisas que comprovam que o conhecimento de jogadores em relação a variações de jogadas, aberturas e movimentos são características que determinam a qualidade do enxadrista muito mais do que sua capacidade de abstração.
Um jogador de xadrez evolui à medida que joga, conhece novos adversários e é capaz de relacionar movimentos conhecidos com estilos e táticas, de forma a antecipar lances de um adversário e decidir suas jogadas com base nisso.
As regras do xadrez são razoavelmente simples. Temos um tabuleiro invariável, com um número de peças constante e tipos de peças que podem se mover de determinada maneira. Não há exceções ou variações. Entretanto, a dificuldade do xadrez está exatamente no número absurdo de movimentos possíveis após cada nova rodada.
Desde os anos 1980, computadores passaram a ser colocados como rivais dos maiores enxadristas do mundo. Em várias circunstâncias, ainda que fossem capazes de avaliar milhões de movimentos possíveis em segundos a cada rodada, enxadristas, que avaliam mentalmente apenas algumas dezenas de movimentos a cada rodada, foram capazes de superá-los.
Ao contrário da avaliação metódica de todo e qualquer desdobramento possível, enxadristas limitam-se a determinadas opções. Eles o fazem com base em sua experiência e naquilo que viram ao longo de suas carreiras. Opções de movimentos inúteis ou infrutíferos são, ao longo de toda uma carreira, deixadas de lado.
Mais do que um talento, enxadristas pensam as próximas jogadas em relação aos computadores que enfrentam, e isso reflete uma habilidade, algo adquirido. Mais do que uma abstração, no entanto, sua inteligência de ação em novas jogadas é determinada não apenas pelas opções e alternativas que eles cogitam mentalmente, mas principalmente por todas as opções que sequer vêm à mente, uma vez que já foram descartadas.
Pensar como inovar e possuir tal habilidade é, cada vez mais, um atributo de poder na sociedade moderna. Não sob a concepção despótica de poder com a qual muitos estão habituados, mas sim sob uma nova ótica. O poder como ferramenta para imprimir mudanças — mas mudanças para melhor.
Para desenvolver tal habilidade, mais do que perceber o que devemos aprender ou desenvolver, precisa-se compreender por que devemos cultivar tais capacidades. O motivo e o propósito são peças fundamentais para desenvolver o poder, pensar e enxergar o mundo de forma mais clara e ser capaz de imprimir as modificações necessárias para solucionar problemas individuais e sociais.
Pensar de forma inovadora não significa “usar” tecnologias inovadoras.
Embora os notáveis avanços nas tecnologias de comunicação, transmissão e em áreas como a robótica, a informática e até mesmo a física tenham, em grande parte, sido fundamentais para a criação de um novo modo de pensar, eles não representam esse pensamento de forma direta.
Imagine do seguinte modo: uma repartição pública com funcionários destreinados, sem reciclagem de conhecimento e com práticas que eram comuns apenas nos anos 1970 recebem uma impressora 3D em seu escritório.
Sem qualquer função aparente nesse contexto, tirando talvez a curiosidade e sem que nenhum dos funcionários locais tenha familiaridade sequer com as duas ou três gerações tecnológicas que antecedem a impressão 3D, o artefato torna-se mais uma máquina encostada.
Essas tecnologias são, no entanto, gatilhos que podem disparar um raciocínio e uma forma de pensar diferentes — e esse mindset leva à utilização dessa tecnologia de forma a criar soluções, promover melhorias e resolver dilemas de forma mais eficaz.
Pensar como um enxadrista sobre a inovação é uma nova maneira de olhar o mundo, descobrimos maneiras mais inteligentes de usar recursos, ferramentas e instrumentos – tecnológicos ou não.
*André Telles é especialista em governos inteligentes. Autor de cinco livros sobre temas relacionados a tecnologia e inovação, palestrante, professor. Atualmente é assessor de inovação da Celepar.