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Marco Legal das Startups representa uma batalha vencida, mas não a guerra inteira.

Anderson Godz

Desde 2016 Anderson Godz é investidor, conselheiro de administração e advisor para nova economia, projetos e governança corporativa. Autor de livro, criou uma comunidade de governança com mais de 12 mil pessoas. É conselheiro da Gazeta do Povo.

Legislação e nova economia

O Marco Legal das Startups e os desafios de conectar o mundo

22/12/2020 14:52
O brasileiro é empreendedor. O mais recente relatório anual do Global Entrepreneurship Monitor (GEM), divulgado em 2020 baseado em dados de 2019, mostra que empreender é o quarto principal desejo dos cidadãos do país – perde para comprar um carro, viajar pelo Brasil e ter a casa própria. E a pandemia deve levar ainda mais indivíduos a abrirem seu próprio negócio por aqui.
O acesso à tecnologia e aos novos modelos de negócio potencializam esse movimento, e práticas como o Board Canvas e o Caderno de Governança para Startups e Scale-ups do IBGC endereçam o que pode vir a ser um enorme desafio: mais conflitos em relacionamentos societários.
Mas tão desafiadora quanto esses conflitos societários é uma regulação que verdadeiramente estimule a inovação no Brasil. Demos passos recentes importantes nesse sentido. Foi quase no apagar das luzes da atividade parlamentar de 2020 que a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 14 de dezembro, o texto-base do Projeto de Lei Complementar 146/19, conhecido como Marco Legal das Startups. Agora, a matéria segue para apreciação no Senado Federal e, caso não haja modificações e precise voltar para a Câmara, vai à sanção presidencial. Foram 361 votos favoráveis e somente 66 contra.
Nesse cenário, o marco representa uma batalha vencida, mas não a guerra inteira. Um dos seus destaques positivos é a criação de uma modalidade especial de concorrência. De acordo com o texto, determinadas licitações poderão ser ofertadas apenas para startups. É a retirada de uma barreira para os empreendedores; são mais oportunidades no horizonte.
Outro avanço, digamos, interessante, é a simples definição do que são startups. Rufem os tambores: “organizações empresariais, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados”. A empresa também deve ter faturamento bruto anual inferior a R$ 16 milhões e registro como pessoa jurídica há menos de 10 anos. Se a definição não é perfeita e é tardia, pelo menos já é uma definição.
Como tudo aquilo que envolve regulação e tecnologia, porém, naturalmente pelo conceito de timing to legal, o projeto tem falhas importantes que precisam ser corrigidas. Três questões foram os principais alvos de críticas por parte de atores do setor:
  • 1) a retirada da flexibilização da legislação trabalhista às startups;
  • 2) a natureza das stock options (opções de compra de ações da empresa a preços vantajosos a colaboradores);
  • 3) a retirada do destaque que pedia alíquota zero de tributos para ganhos de capital de investidores-anjo em startups.
As duas primeiras são muito íntimas dos diferentes tipos de relacionamentos societários e da natureza das novas relações de trabalho que um mundo digital requer.
O empreendedor e deputado federal Vinicius Poit (NOVO-SP), relator do projeto na Câmara, que tem feito um trabalho digno de reconhecimento, tem dito que algumas mudanças foram estratégicas para que o projeto pudesse avançar. Isso é do jogo político. O risco é, no limite, gerar menor competitividade do Brasil em um cenário de mundo hiperconectado.
A questão da flexibilização trabalhista, por exemplo, que não consistia na parte principal do Marco Legal das Startups, foi considerada uma espécie de “mini reforma trabalhista” pelo próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e por muitos deputados que sinalizaram que não aprovariam o projeto em razão desse ponto.
A ideia é que ela seja incorporada a novas discussões envolvendo a modernização das relações de trabalho – caso dos inúmeros projetos sobre home office apresentados nos últimos meses, justamente por conta da pandemia da Covid-19, que causou profundas transformações nas relações profissionais.

Stock options e alíquota zero a investidores-anjo

Sobre as stock options: sem legislação, há dúvida sobre a natureza desses valores. Eles são ou não parte da remuneração?
A primeira versão do Marco Legal considerava essas ações como não remuneratórias, mas houve uma reviravolta e as stock options foram definidas como remuneratórias, determinando, contudo, que para fins de apuração será considerado somente o preço de compra da opção em vez do valor da ação. O que vai ser levado em conta, portanto, é o valor mais baixo. Poit disse que a remuneração apurada no preço justo da opção vai ser considerada no exercício. Ou seja, até o exercício não haverá pagamento de imposto. Exerceu, pagou. Não exerceu, não pagou.
Já sobre a exclusão do destaque que pedia alíquota zero de tributos para ganhos de capital de investidores-anjo em startups, Poit foi taxativo: em tempos de crise, seria praticamente impossível o governo aprovar qualquer tipo de renúncia fiscal.

Marco Legal das Startups é apenas o começo

Apesar desses pontos mais sensíveis, não podemos negar que a aprovação do Marco Legal das Startups na Câmara representa avanços. É preciso, contudo, cautela, pois o momento é de organização e busca por ajustes importantes, como os mencionados acima.
A aprovação do texto na Câmara é um sinal da maturidade do setor de startups no Brasil. Em um país cada vez mais empreendedor, o segmento deve ser levado a sério. Mas a aprovação por parte dos deputados federais foi apenas o primeiro passo. Precisamos aguardar os próximos capítulos, que envolvem a discussão pelo Senado e a sanção presidencial.
O caminho árduo do Marco Legal das Startups é um senhor exemplo de algo que estudamos diariamente em Gonew.Co: a hiperlocalização das regulações versus um ambiente de negócios digitais e globais. Multiplique todo esse esforço brasileiro para todos os demais países que estão se vendo lentos diante da atuação de empresas-estado digitais e globais - e daqui a pouco, a depender de Elon Musk, do universo!
Em qualquer parte do mundo, as regulações contemplam um desafio hercúleo: aspectos culturais e características sociais de cada nação acabam tendo influência na forma da lei. O problema é que as empresas, principalmente as digitais, atuam cada vez mais sem fronteiras e com “colaboradores-sócios”, distribuídos em qualquer país que seja mais hospitaleiro aos e-cidadãos e às suas facilidades e incentivos digitais.
Não somente os modelos de negócio, assim, acabam por desafiar tais regulações, mas o próprio avanço sem precedentes do trabalho remoto ao redor do mundo. Mesmo que Brasília - que, como cantava Renato Russo, “neste país lugar melhor não há” - se mova rápido em direção ao mundo digital, isso não será tudo. Vemos, por enquanto, poucos movimentos estruturados e amplos no mundo voltados a buscar entendimentos comuns dos países em relação aos negócios digitais. Os desafios de conectar o mundo estão apenas começando.