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CPMI das Fake News fez relatório sobre anúncios

Anderson Godz

Desde 2016 Anderson Godz é investidor, conselheiro de administração e advisor para nova economia, projetos e governança corporativa. Autor de livro, criou uma comunidade de governança com mais de 12 mil pessoas. É conselheiro da Gazeta do Povo.

Artigo

Fake news: até onde pode ir a regulação do Estado?

06/06/2020 15:08
Mesmo antes do Covid-19, já estávamos vivendo uma série de contradições quanto ao uso ético da tecnologia e inovações. A pandemia não só acelerou em pelo menos cinco anos o caos, mas também as questões digitais. E ao que parece, estamos desligando o modo “contradições” e ligando o modo “absurdos”.
A questão das fake news está se tornando um grave problema da sociedade e também de empresas, instituições e governos. A Câmara dos Deputados tem 50 propostas sobre o tema, sendo que a mais antiga data de 2005. Só em 2020, foram apresentados 21 projetos que envolvem, de alguma forma, a questão das fake news. Um dos projetos de lei (PL 2.630/2020), de maior polêmica e repercussão, foi elaborado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e pelos deputados federais Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP). Batizada de “Lei das Fake News”, a proposta busca instituir a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”.
Verdade que há pontos positivos: é preciso, sim, combater perfis falsos, redes de calúnia e difamação e robôs – os chamados bots – programados apenas para espalhar desinformação criminosa. Em entrevista à plataforma Inconsciente Coletivo no último sábado (30), a deputada Tabata afirmou que “o usuário precisa ter o direito de saber quando interage com robôs ou conteúdo que é patrocinado”. Nessa semana, contudo, tivemos um amargo “aperitivo” do que essa regulação estatal pode representar.
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, em curso no Congresso Nacional, classificou, sem critérios claros, a Gazeta do Povo, veículo com atuação centenária, como divulgador de “notícias falsas”. Todas as agências checadoras citadas pelos parlamentares negaram ter sido consultadas sobre o jornal. O presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Träsel, disse que o episódio “demonstra os riscos de se gravar em lei um conceito de desinformação e deixar a cargo do Estado a classificação de uma notícia como falsa ou verdadeira”. Já a Associação Nacional de Jornais (ANJ) pediu esclarecimentos à CPMI sobre o porquê de a Gazeta ter sido incluída na lista. Por fim, a CPMI voltou atrás e retirou a Gazeta do Povo da lista.
O estranho episódio reforça o que comentamos em nosso último Speed & Some Control. A questão de regulação das fake news, como de qualquer artefato baseado em tecnologia e inovações, é bastante delicada e deveria envolver um debate amplo com toda a sociedade, como ocorreu com o Marco Civil da Internet, que já foi bem complexo. Em que pese haver um senso de urgência, pois os impactos das fake news e da desinformação parecem ainda maiores em tempos de caos como o que estamos vivendo, devemos separar urgência de oportunismo. Afinal, no limite, o debate é político e a tecnologia, por enquanto, não se propaga per si com inteligência artificial.
Banir todo e qualquer discurso que, em tese, ofenda alguém macula a liberdade de expressão fere um dos pilares da sociedade democrática. A aprovação de um projeto como os propostos daria mais munição regulatória ao Estado, que seria também o responsável por fazer a curadoria do que seria considerado “desinformação”. Quem teria o poder de dizer o que é ou não verdade? O que é fake? O que é ofensivo? Como garantir, desta forma, liberdades tão fundamentais como a liberdade de expressão?
No campo do Direito, já existe a previsão para os delitos de calúnia, difamação e injúria. Já não temos, portanto, mecanismos de combate para conteúdos ofensivos que ultrapassem a barreira da legalidade?
Originalmente, o projeto também previa a responsabilização de plataformas como Facebook, Twitter, WhatsApp e Telegram pelos conteúdos por elas disseminados. As redes sociais deveriam moderar e, eventualmente, excluir o conteúdo. Essa previsão era contrária ao Marco Civil da Internet, espécie de “Constituição” brasileira da Internet. Pela lei, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente (art. 19). Isso justamente para impedir a censura e assegurar a liberdade de expressão.
Os trechos considerados (mais) controversos, entretanto, foram retirados do projeto, e a ação das plataformas ficou restrita a intervir sobre contas e perfis considerados inautênticos, bem como sobre a distribuição de conteúdo impulsionado em massa ou via pagamento.
Mas isso não resolve um outro lado do problema: o do poder dos “proprietários de plataformas”, no conceito de Timms & Heimmans. O “fast-check” do Twitter no perfil do presidente dos EUA alertando que mensagens publicadas por ele continham “mentiras e promoviam a violência” é, no limite, um ato político da rede, cujo CEO é sabidamente um ativista contrário a Trump. Nessa linha, a escolha cirúrgica das ações da plataforma tanto no post a respeito do voto por correio na Califórnia, que o presidente alegou ser “substancialmente fraudulento”, como depois, quando ocultou uma publicação de Trump que dizia que “quando começam os saques, começam os tiros”, deve ser questionada da mesma forma que os posts presidenciais. Quem contrapõe o proprietário da plataforma? Por conta do episódio, o presidente assinou uma ordem executiva a fim de mudar a legislação dos EUA para limitar a proteção legal das redes sociais e permitir que elas sejam processadas por conteúdos publicados por seus usuários. Disputas tecno-polarizadas.
Cada vez mais a tecnologia nos oferece mais possibilidades e também mais absurdos. Ao mesmo tempo em que conseguimos nos comunicar de forma mais eficaz, ampla e global, essa possibilidade, que deveria ser um direito, acaba usada como arma. Ainda estamos longe de um consenso ético-moral sobre essas questões.
Se havia alguma dúvida de que precisávamos estudar profundamente esses temas, a cada dia essa necessidade fica mais evidente. Estamos diante de um enorme desafio que requer muito debate e #speedandsomecontrol.