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O uso das tecnologias para o encantamento e para a guerra expõe as contradições humanas.

Anderson Godz

Desde 2016 Anderson Godz é investidor, conselheiro de administração e advisor para nova economia, projetos e governança corporativa. Autor de livro, criou uma comunidade de governança com mais de 12 mil pessoas. É conselheiro da Gazeta do Povo.

Perigo ou inovação?

Drones e tecnologias da beleza e do caos

13/01/2020 15:06
No começo do mês, um ataque com drone coordenado pelos EUA gerou uma crise com o Irã. Pouco antes, na China, o Ano Novo foi celebrado com um ensaio gravado, em que dois mil drones substituíram fogos de artifício no céu de Xangai. Por trás de ambos os fatos, algo em comum além da tecnologia em questão: um tal ser humano.
A crise recente entre Estados Unidos e
Irã lançou luz sobre o poder de fogo do país árabe, mas também chamou atenção
pelo uso de drones para objetivos menos encantadores que um réveillon.
Em setembro de 2019, o Irã fez um ataque com drones a instalações de petróleo na Arábia Saudita, em uma demonstração que especialistas apontaram como uma ameaça da rápida evolução do poder bélico do Irã na região. Israel também já foi alvo de ataques por drones iranianos em 2018 e 2019.
O Irã iniciou seu programa de drones
durante a guerra Irã-Iraque com os VANTs (Veículos Aéreos Não Tripulados). Não
está claro quantos drones o país tem à sua disposição, embora esteja claro que
tenha aumentado sua atividade no setor nos últimos anos. A sua linha de drones
é sofisticada, com tecnologia de ponta e, justamente por isso, desperta receios
justificados na região e no mundo.
O governo dos Estados Unidos já destacou as capacidades de drones do Irã. Em uma Avaliação Mundial de Ameaças divulgada pelo Escritório do Diretor de Inteligência Nacional no começo do ano passado, as autoridades citaram o uso de drones pelo Irã contra o ISIS na Síria como “uma mensagem a possíveis adversários, mostrando a determinação de Teerã em retaliar quando atacado e demonstrando a melhoria do Irã em suas capacidades militares e de projetar força.” Por outro lado, o próprio EUA têm drones como parte recorrente do seu repertório bélico. Apenas no último ano, o país usou a tecnologia para ataques ao Irã, Afeganistão e Iêmen.
Poder militar e tecnologia
Como dizemos na Comunidade Gonew.co, nada tão novo, nada tão velho. Muito da
tecnologia e das inovações das últimas seis ou sete décadas, que são hoje parte
das nossas vidas, são resultado de pesquisas militares e tem como pano de fundo
disputas e guerras.
Até o queridinho Vale do Silício, por
exemplo, tem nas suas origens uma relação com a Guerra Fria. Em 1957, com
a  corrida espacial  desencadeada pelo sucesso da Rússia com o
Sputnik, o governo dos EUA fundou a NASA, em Moffett Field, na Califórnia. Na  mesma época, a Marinha tinha uma base em
Sunnyvale, na mesma região. A partir daí, a relação de inovação e pesquisa
militar foi um caminho natural na Bay Area e desse contexto emergiram uma série
de inovações.
O sistema de GPS, por exemplo, presente em basicamente todos os smartphones atuais, é uma criação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos para uso das forças armadas do país. A tecnologia foi baseada, parcialmente, em sistemas de navegação via rádio usados na Segunda Guerra Mundial.
De forma similar, as câmeras digitais surgiram para servir aos
satélites norte-americanos para captura de imagens de territórios inimigos. A
tecnologia foi inaugurada no satélite KH-1 “Kennan”, criado pela NASA em 1976,
equipado com uma câmera óptico-elétrica capaz de transmitir imagens em formatos
digitais.
A própria internet é uma invenção da guerra: o embrião da internet, a
ARPANET, foi criada pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria como um meio de
comunicação  e de armazenamento de dados
descentralizado, que pudesse continuar funcionando mesmo que parte dele fosse
bombardeado.
Até mesmo alguns aparelhos inócuos do cotidiano devem sua existência à
pesquisa militar. O maior exemplo é o forno de microondas, cujo componente
principal, o magnetron, era usado durante a Segunda Guerra Mundial para a
produção de radares. O uso para esquentar comida foi descoberto por acaso,
quando o engenheiro Percy Spencer testava o magnetron e percebeu que uma barra
de chocolate no seu bolso havia derretido - e aí surgiu o uso mais difundido da
tecnologia.
Itens essenciais também são resultado da pesquisa militar, como a produção em escala de antibióticos: a penicilina precisou ser produzida em massa durante a Segunda Guerra Mundial, para tratar doenças  que dizimavam os batalhões. Também neste período, o grande número de feridos na guerra levou ao aperfeiçoamento da transfusão de sangue, bem como a medicina aeroespacial, que possibilitou aos pilotos voarem a altitudes elevadas e por um longo período de tempo de forma mais segura.
No Oriente
Do outro lado do mundo não é diferente: a China também é um exemplo da
relação entre poder militar e tecnologia. O interesse do país pela chamada
“vitória sem sangue”, com o uso de armas biológicas e genéticas, está
colocando-o no pódio da corrida por inovações em estudos genéticos,
biotecnologia e inteligência artificial.
Desde a década de 90, o Exército de Libertação do Povo Chinês antecipa uma “guerra de inteligência” e usa inteligência artificial para criar operações e explorar novas ideias e estratégias de guerra. Em 2016, a China lançou o National Genebank, que pretende se tornar o maior repositório mundial de dados genéticos. O objetivo é “salvaguardar a segurança nacional em bioinformática” e colocar a China na liderança da biotecnologia.
Considerando a falta de transparência e incerteza de considerações
éticas nas iniciativas de pesquisa da China, os riscos estão presentes, mas
basta estar lá para sentir a contradição da segurança das câmeras e dos
algoritmos de reconhecimento facial que substituem o policiamento ostensivo. É
inegável o tamanho do passo da ciência no país asiático.
O uso de drones para ataques militares e atentados terroristas pode
ser uma preocupação, mas o avanço da tecnologia não é o principal problema. Os
drones, por si só, não são máquinas mortíferas capazes de matar
instantaneamente. Pelo menos ainda não. Por trás dessas e de todas as outras
armas tecnológicas, cada vez mais poderosas e sutis, estão seres humanos.
E aí talvez esteja o maior perigo. Antes fossem somente máquinas pois, ao menos enquanto elas não são capazes de sentir medo, ego ou sensação de poder, não são falsas e nem mentem, muito menos geram conflitos ou guerras. Por trás do caos ou da beleza do réveillon de drones chineses a expressão das nossas maiores contradições: os próprios seres humanos.