Desde 2016 Anderson Godz é investidor, conselheiro de administração e advisor para nova economia, projetos e governança corporativa. Autor de livro, criou uma comunidade de governança com mais de 12 mil pessoas. É conselheiro da Gazeta do Povo.
Ausência das ruas, quem diria, abala a democracia líquida e digital
24/04/2021 15:18
Enquanto discutimos sobre tomar melhores decisões a partir de indivíduos, de redes descentralizadas por blockchain e se no final do dia elas nos trariam maior confiança, transparência e empoderamento, o velho poder ressurge usando uma paradoxal fragilidade desses tempos tão digitais e de isolamento social: a falta da expressão das ruas, a ausência da possibilidade de mobilizações dos cidadãos.
Muitas das mobilizações que obtiveram êxitos (por assim dizer) significativos nas últimas décadas, da Primavera Árabe ao Brexit, do Ice Bucket Challenge (desafio do balde de gelo) ao Black Lives Matter, até as gigantescas manifestações contra a corrupção em meados da década passada, todas, sem exceção, embora tenham se iniciado no mundo digital, ganharam força como instrumentos de pressão quando alcançaram o mundo “real” - forçando novamente essas antigas abstrações.
No novo livro “Gonew Guide: O Universo da Governança na Veloz Economia” apontamos um sexto poder que nasce da tecnologia, do efeito rede e da “ascensão de pessoas, de movimentos, de um maior ativismo, da filiação e do engajamento a quase tudo e a qualquer coisa”. O sexto poder se nutre das tecnologias e das redes sociais disponíveis, as quais entendemos como um poder anterior neste ciclo, o quinto. Separamos ambos porque este se fixou como tal conforme as bigtechs assumiram uma posição de curadoria, vigilância e “atos de cancelamento” - seja em relação a conteúdos específicos ou mesmo a seus participantes. Por fim, mantemos o quarto poder, a mídia, que embora fragilizada pela perda de receitas de publicidade e tomada por vieses (algumas vezes) exagerados é, ainda, um porto seguro de credibilidade em um mar de excesso de informações e fake news.
Somados aos tradicionais poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, formam-se os seis poderes contemporâneos em um turbilhão de democracia líquida. Um turbilhão em que todos se afetam mutuamente e atuam sobre a sociedade como um todo, trazendo desafios (e oportunidades) para empresas, sejam elas quais forem - especialmente para a tomada de decisão da alta gestão e dos conselhos empresariais.
Devo confessar, porém, que até o apocalíptico 2020 estávamos muito mais preocupados com as contradições do lado tecnológico deste jogo. Mas eis que surge uma pandemia e ainda estamos tentando entender todas as consequências tão ou mais críticas para a humanidade do que a Segunda Guerra Mundial.
Em um país tradicionalmente apático, havíamos descoberto esse poder das mobilizações e agora não o temos mais. Existe melhor momento para a volta do velho poder quando não podemos reagir nas ruas?
No Brasil, onde miséria pouca é bobagem, somos há mais de um ano um grande e tropical laboratório a céu aberto de inabilidades políticas, miopias ideológicas de todos os espectros e sofrimento econômico e sanitário. Tudo isso inflado pelos extremismos que exponencializam o pior da natureza humana em redes, nas suas armaduras medievais digitais, no subterfúgio do anônimo, nos robôs e seus algoritmos polarizados.
Mas nesse tabuleiro do jogo de poderes na “muVUCA” brasileira não nos demos conta de que a pandemia nos arrancou mais que o convívio: perdemos a força das ruas. Em um país tradicionalmente apático, havíamos descoberto esse poder das mobilizações e agora não o temos mais. Existe melhor momento para a volta do velho poder quando não podemos reagir nas ruas?
A nossa primavera árabe, ou tropical, que tanto lutou está de luto. Tanto pelas lamentáveis e evitáveis mortes, sim, como também pela morte da economia e do sustento de muitos. Mas se não bastasse, o luto é também da ética, do combate à corrupção, da voz de um país. Semana após semana pessoas que não pregam extremos estão atônitas. Por isso o sexto poder, o das mobilizações hiperconectadas, está em xeque sem a sua expressão maior (offline): as ruas.
Sem a possibilidade de que a hiperconectividade se traduza em demonstrações reais e físicas, e com as estruturas estatais sendo “aclamadas” como poderes sobrenaturais para tempos de caos, os três tradicionais poderes sentaram nas suas cadeiras - ou nos sofás de seus confortáveis home offices. Enquanto isso, eles requentaram a pipoca e renovaram as pilhas de seus controles remotos “divinos” e, assim, mudam radicalmente a programação das nossas vidas.
Perante um quarto poder (mídia) combalido financeiramente, um quinto poder (redes sociais) cada vez mais alvo do avanço regulatório e do splinternet e um sexto poder (mobilizações) enfraquecido, sem suas expressões físicas de pressão, voltamos a viver como há 20 anos. Não foram só décadas perdidas na economia. Perdemos anos de avanços éticos, da democracia líquida e digital, da união de uma sociedade que havia descoberto a voz política e um ativismo cívico sem precedentes. Então, temos mais trabalho do que prevíamos, afinal o velho poder contra atacou.