Bolo bilionário
Como as gigantes da tecnologia coletam dados sobre nossa saúde e repartem o mercado
A gerente de automação Helena Tamura é uma adepta de aplicativos de saúde e bem-estar há quatro anos. Por meio do Apple Watch e de outras ferramentas do iPhone, ela mede o batimento cardíaco, faz exercícios físicos, monitora a alimentação, controla a qualidade do sono e a regularidade da respiração.
“Para mim, que sou uma pessoa sedentária, ajuda bastante. Nunca gostei de fazer atividade física e vou na academia por obrigação. Os aplicativos me ajudam mais na parte motivacional, é como se fossem um personal trainer virtual”, explica.
Ao mesmo tempo que a tecnologia tem se tornado uma aliada importantíssima para melhorar e monitorar a nossa saúde, ela abriu um mercado gigantesco. O número de healthtechs – empresas de tecnologia voltadas à saúde – duplicou nos últimos cinco anos no Brasil, de acordo com o Distrito Healthtech Report Brasil 2020. Atualmente, são 542 empresas mapeadas no estudo – eram 265 em 2015.
Os investimentos no setor também cresceram maciçamente. Desde 2014, as healthtechs brasileiras receberam US$ 430 milhões em aportes. Mesmo com a crise provocada pelo novo coronavírus, a expectativa é de que os investimentos em 2020 superem os do ano passado, dada a relevância que tais startups ganharam pelo seu esforço em combater a pandemia.
“A tecnologia nos permite hoje um maior acesso às informações. Com a pandemia, a gente usa mais a telemedicina, que já vinha sendo envolvida, mas a gente não tinha um uso em grande escala”, avalia Claudia Barra, professora de tecnologia em saúde da PUCPR.
As despesas com bens e serviços de saúde no Brasil atingiram R$ 608 bilhões em 2017, equivalentes a 9,2% do PIB. Desse total, R$ 254 bilhões (3,9% do PIB) foram despesas do governo e R$ 355 bilhões (5,4% do PIB), gastos de famílias e instituições sem fins de lucro, de acordo com os últimos dados disponíveis do IBGE. A despesa per capita foi de R$ 1.715 para as famílias e de R$ 1.227 para o governo.
Nesse bolo bilionário, as informações sobre a saúde dos pacientes se tornaram uma grande mina de ouro para as empresas de tecnologia. Não só para as startups, mas também para as "big techs", as grande companhias tecnológicas que já dominam outros setores da nossa vida. A Apple estima que a receita com produtos da área de saúde pode alcançar US$ 313 bilhões em 2027, o dobro da receita total em 2018.
"Essas empresas têm uma concentração altíssima de mercado, compram a rodo empresas menores, startups, bases de dados. Não tem como fugir do ecossistema delas”, explica o advogado e cientista social Caio Machado, especialista em ética da Inteligência Artificial (IA) na saúde.
O objetivo dessas empresas é chegar a oferecer tecnologia em escala ao setor público. "O potencial retorno econômico é gigantesco. Mas nesse caso precisa ter regimes de exploração. A empresa vai poder fazer um uso privado de informações que está coletando por meio de um serviço público?”, questiona.
Nos últimos anos, começou uma corrida entre as corporations do Vale do Silício para se repartirem o mercado da saúde, cada uma aproveitando o próprio know how. Eis como.
Apple investe em softwares e hardwares
A Apple, que recentemente alcançou um valor de mercado que é o dobro do PIB brasileiro, aposta nos aplicativos de saúde e bem-estar vendidos na sua loja virtual, e nos wearables – os dispositivos tecnológicos vestíveis. Além disso, promove e banca pesquisas na área da saúde, e contrata médicos.
Só no ano passado, a empresa anunciou três estudos em parceria com várias instituições como a Organização Mundial da Saúde, as universidades de Harvard e do Michigan, nos Estados Unidos, e o hospital americano de Brigham. Objetivo? Investigar o ciclo menstrual, a saúde auditiva e cardíaca dos pacientes.
Em junho, a Apple lançou no Brasil um novo aplicativo para o Watch que faz o eletrocardiograma direto do pulso do usuário e registra eventuais sintomas, como batimento cardíaco acelerado ou descompassado. “Temos convicção de que esses recursos podem ajudar os usuários a ter mais informações na hora de conversar com seus médicos”, afirmou o médico Sumbul Desai, vice presidente de Health da Apple. O produto foi aprovado pela Anvisa.
Mas há poréns. Em 2017, por exemplo, pesquisadores da universidade norte-americana de Stanford analisaram o desempenho de relógios de várias marcas e concluíram que os dados coletados nas pessoas de pele mais escura e nos homens, sobre ritmo cardíaco e consumo de calorias, não eram muito confiáveis.
“O desenvolvimento dessas tecnologias passa pela coleta massiva de dados. Hoje é possível precificar o seguro-saúde com base nos dados do relógio da pessoa: anda muito, faz esporte, dorme bem… Se você consegue isso numa população, você sabe exatamente o que cobrar de cada um”, explica Machado.
O negócio da Microsoft é inteligência artificial e computação em nuvem
A Microsoft aposta nas soluções de inteligência artificial e computação em nuvem para hospitais, empresas de seguro e farmácias. No meio da pandemia, a companhia criou um aparelho de realidade mista chamado HoloLens, usado nos hospitais de Londres, que analisa os pacientes com Covid-19 em tempo real e sem precisar de contato físico, o que reduz a possibilidade de infecção dos profissionais da saúde.
No início de setembro, o hospital Albert Einstein, em São Paulo, criou, em parceria com a Microsoft, o aplicativo CoVida para monitorar os sintomas da Covid-19 por meio da inteligência artificial para 30 mil funcionários das empresas clientes do hospital. A partir da interação com um chatbot, eles indicam os seus sintomas e, com base nas respostas, são encaminhados para atendimento médico virtual, exames domiciliares ou para o hospital.
“A ideia é acelerar a assistência por meio da tecnologia, de forma que as pessoas tenham um acompanhamento médico constante para que, em caso de infecção pelo novo coronavírus, possam realizar o tratamento com agilidade e assertividade”, diz Eduardo Cordioli, gerente do Einstein.
A pandemia só acelerou a tendência dos últimos anos. Desde 2017, o Hospital 9 de Julho, em São Paulo, monitora por meio de 57 câmeras inteligentes, desenvolvidas em parceira com a Microsoft, o risco de queda dos pacientes. Por meio da IA, o sistema alerta os enfermeiros quando algum paciente tenta sair da cama ou quando as grades da cama são esquecidas abaixadas.
Além da IA, a empresa fundada por Bill Gates fornece serviços de "cloud computing" ou computação em nuvem, que são recursos de TI disponibilizados na internet e entregues conforme a demanda. É considerada a grande fronteira a ser explorada no setor.
Um dos maiores clientes da Microsoft a usar a computação em nuvem é a Walgreens Boots Alliance, que, além de ser a maior rede de farmácias do mundo – com mais de 400 mil empregados em 25 países da Europa e Estados Unidos –, tem clínicas, lojas de cosméticos e de produtos médicos e de bem-estar. A Microsoft presta serviços de clouding também para a Blue Cross Premera, companhia de seguros de saúde com 2 milhões de clientes nos EUA.
A inteligência artificial ainda está no estágio inicial de adoção na área da saúde, mas é considerada uma ferramenta de grande potencial para gerenciar grandes volumes de dados e diminuir os erros médicos. Em 2019, a Microsoft anunciou que trabalha no desenvolvimento de um sistema inteligente de escrita que converte os diálogos entre paciente e médico em prontuário médico digitalizado, o que economiza tempo e permite que o médico dê atenção total ao paciente, sem distrações burocráticas.
Google gerencia grandes volumes de dados
Quem pensa que o Google se resume ao motor de busca e aos anúncios na internet está enganado. A empresa californiana investe pesado também na gestão de dados e no clouding para a saúde. No Brasil, desenvolveu soluções para a SulAmerica e a DNA Brasil, um projeto de duas pesquisadoras da Universidade de São Paulo (USP) para sequenciar os genomas de 15 mil brasileiros.
A plataforma permite que as cientistas Lygia Pereira e Tábita Hünemeier armazenem, analisem e compartilhem um volume gigantesco de dados a um custo reduzido. A pesquisa vai ajudar a tomar decisões médicas baseadas em informações que representam, mais fielmente do que é hoje, a população brasileira.
Amazon vende remédios on-line
A Amazon, que vem em franca expansão apesar da pandemia, pode se tornar uma potência mundial no comércio on-line de medicamentos. No ano passado, Bezos registrou no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) a licença para vender medicamentos, suplementos alimentares, materiais odontológicos e remédios para animais no Brasil.
Isso já ocorre nos EUA desde 2018, quando a empresa firmou uma parceria com a farmácia on-line PillPack. Funciona assim: após cadastrar a prescrição médica no site, o paciente recebe mensalmente os remédios, separados por doses e com instruções de como tomá-los.
Seis em cada dez norte-americanos sofrem de doenças crônicas, segundo o Centro para Doenças Controle e Prevenção e o mercado dos remédios vendidos sob prescrição médica vale US$ 500 bilhões no país.
Bezos entrou com pedidos para vender medicamentos também no Reino Unido, Canadá, Austrália, China, Egito, UE, Índia, Israel, Japão, México, Singapura, Taiwan, Turquia, e Emirados Árabes.
Após o aumento nas vendas on-line no Reino Unido, a Sociedade Farmacêutica britânica lançou um alerta. “Remédios não são produtos de consumo normal. A interação presencial entre pacientes e farmacêuticos é de verdadeira importância e seu valor não pode ser perdido. Cada interação é uma oportunidade para uma avaliação médica e para assegurar que as pessoas não enfrentam problemas com seus medicamentos e que os estão tomando em segurança”, afirmou Sandra Gidley, presidente da entidade, em nota.
Apesar do alerta, parece cada vez mais difícil parar esse trem em alta velocidade. A assistente virtual da Amazon, Alexa, por exemplo, já pode ser usada para criar lembretes para tomar os medicamentos. E mais. Nos EUA, por meio do comando vocal, o paciente pode encomendar remédios na rede americana de farmácias Giant Eagle.
Os riscos para os pacientes
Quando smartphones e relógios se tornam dispositivos que também monitoram a nossa saúde, a linha entre consumidor e paciente se torna mais sutil. Mais de 75% das pessoas afirmam que estão felizes em compartilhar algum nível de informação pessoal em troca de serviços de saúde personalizados, melhores produtos e maior segurança, de acordo com o estudo Saúde 2030, da KPMG.
Helena Tamura, que diariamente usa aplicativos de saúde e bem-estar, diz não estar preocupada em ceder informações sensíveis para grandes empresas. “Se em troca o aplicativo me avisa que eu possa ter um ataque cardíaco, prefiro que alguém saiba e possa me ajudar”, afirma.
O histórico de gestão dos dados por parte dessas companhias, porém, levanta sérias dúvidas entre os especialistas. As grandes corporations já levaram multa recorde das autoridades da União Europeia e foram submetidas ao escrutínio por parte do Congresso dos Estados Unidos.
Há outras questões. Para Caio Machado, especialista em ética da IA na saúde, permitir que um pequeno grupo de grandes empresas colete dados sensíveis como os relacionados à saúde comporta riscos altíssimos.
“Você pode ter um diagnóstico errado da tecnologia, informação sendo usada para fins que você não previu, como, por exemplo, aumentar o preço do seu seguro saúde. Quais são os controles sobre isso? Qual é o uso que vai ser feito dessa informação?” questiona Machado.
“Quando a gente disponibiliza esses dados, não está se preservando muito. Precisamos cobrar mais e a população tem que se empoderar e lembrar que os nossos dados de saúde são sensíveis”, afirma Cláudia Barra, da PUCPR.
A Lei Geral de Proteção dos Dados (LGPD), que entrou em vigor no fim de agosto, é um avanço importante e deve trazer maior segurança jurídica, segundo Machado.
“A partir de agora, se as empresas têm alguma informação minha, passam a ter uma série de deveres para comigo: desde a segurança da informação a direitos do usuário. Eu posso exigir que eles apaguem, que corrijam. Cria-se uma relação jurídica onde antes não havia”, explica o advogado.